Madrugada
São três horas e quarenta e cinco minutos da manhã. Madrugada invernal, de vento sueste, que sopra em rajadas, trazendo consigo açoites de chuva gelada e revolvendo o atlântico sul, massa escura de água encimada por brancas cristas, mais adivinhadas do que avistadas, naquela escuridão de noite sem lua. Apenas o farol centenário encarapitado no alto da Ilha da Paz corta o negrume da noite como um gigantesco dedo de luz apontando o caminho seguro para os navegantes.
A bordo da pequena embarcação, o silêncio somente é quebrado pelo ronco dos dois possantes motores girando a plena carga, cortando as vagas a toda velocidade, borrifos brancos deixando uma crosta de sal no parabrisa, rumo ao seu destino. Os dois tripulantes, rostos fracamente iluminados pelos reflexos das luzes dos instrumentos de navegação, estão concentrados em sua tarefa de conduzir a lancha através do mar bravio e preocupados em entregar seu passageiro com segurança, enquanto este, solitário em sua poltrona, olhos cerrados, já antecipa mentalmente a situação que se aproxima e as atitudes que deve tomar quando chegar ao seu destino, além de estar com uma pontinha de inveja dos demais mortais que não precisam sair de suas camas quentes numa noite como aquela.
Já passado o través do morro João Dias, sinalizado para os navegantes pelo farolete de mesmo nome, encravado em sua encosta, e em cujo cume encontram-se, ocultos pela noite, os canhões do antigo grupamento de artilharia de costa do Forte Marechal Luz, o silêncio e a concentração de todos a bordo são bruscamente interrompidos pelo súbito despertar do rádio transmissor-receptor, de onde provêm uma voz estrangeira, de nacionalidade indefinida, falando em inglês com sotaque carregado, apresentando uma entonação de urgência na voz, avisando que se encontra a duas milhas da posição de embarque do prático. Naquele momento, o passageiro da lancha – o prático – deixa de ser um mero espectador e passa a tomar parte ativa no cenário que se desenrola. Tomando nas mãos o microfone do rádio, passa a dar as primeiras orientações ao comandante do navio, escalando pela primeira vez no porto de São Francisco do Sul.
Este rápido diálogo com o comandante dá início à rotina habitual do prático, de guiar os navios com segurança rumo ao porto, a qualquer hora, seja dia ou noite. Pela curta conversa, o prático, pela sua experiência diária em contato com diversas nacionalidades diferentes, já consegue identificar o sotaque do comandante do navio, provavelmente indiano.
A lancha se aproxima da posição de embarque do prático e permanece aguardando a aproximação do navio. A embarcação, agora parada e a mercê das vagas, é jogada para lá e para cá pelo mar revolto como se fosse de brinquedo, cada um a bordo segurando-se como pode. Através da escuridão que se divisa além do pára-brisas, percebe-se que, devido à chuva e ao vento, a visibilidade está limitada em menos de uma milha náutica, ou seja mil e oitocentos metros, pois apesar de o navio haver informado estar já a duas milhas da posição de embarque do prático, ninguém a bordo consegue ver as luzes de navegação do navio que se aproxima, ocultas na névoa chuvosa daquela madrugada. O radar, contudo, mostra um eco forte que, destacado da interferência da chuva e do mar, mostra-se em movimento, na direção da posição da lancha.
De fato, quando o eco apresenta uma distância de cerca de 1 milha, alguém a bordo da lancha aponta para um ponto indefinido na escuridão, onde se pode agora divisar o brilho desvanecido das luzes de posição do navio, brancas nos mastros de vante e de ré, verde à boreste e vermelha à bombordo da superestrutura. Alívio geral, aparentemente o navio se aproxima no rumo correto, com sua velocidade já reduzida para o embarque do prático. Mais uma vez o comandante chama o prático pelo rádio, informando que já tem a lancha no seu visual, e perguntando qual a melhor velocidade para o embarque deste. O prático, já se preparando para abandonar a proteção e a temperatura agradável do interior da cabine da lancha, confirma a contato visual com o navio e informa ao comandante que uma velocidade de cerca de 8 nós seria adequada para o transbordo. Conforme o navio se aproxima, suas dimensões começam a tomar forma, saindo silenciosamente da escuridão da noite, tal qual gigantesca serpente marinha de aço com duzentos e setenta e cinco metros de comprimento, sem apresentar qualquer ruído, exceto o marulhar da onda causada pela sua proa cortando as águas, agora fracamente iluminada pela luz do farol de busca da lancha, dirigido para o costado do navio a fim de que melhor se possa ver a frágil escada de corda, com degraus de madeira, chamada, segundo as tradições marinheiras, de “escada de quebra-peito”, único elo de segurança do prático na hora do transbordo, e que pode significar a diferença entre a vida e a morte. Se a escada se romper ou por qualquer outro motivo o prático escorregar ou perder o apoio e cair na água, é grande a possibilidade de que ele possa ser esmagado pela lancha contra o costado do navio, ou sugado para baixo deste pela força do hélice de mais de sete metros de diametro, girando próximo da superfície da água.
Neste momento, o prático já está em pé, do lado de fora, na proa da lancha, exposto à chuva, ao vento e aos borrifos gelados de água salgada, aguardando a embarcação atingir a mesma velocidade do navio para poder se aproximar. Nesse ínterim ele, calculando mentalmente o momento exato, se prepara para dar o salto preciso para a “escada de quebra-peito”, não conseguindo evitar, mesmo que tendo repetido este ato milhares de vezes, aquele “friozinho na barriga”, com o coração batendo em compasso acelerado, antecipando uma situação potencialmente perigosa. Não haverá chance para uma segunda tentativa se errar a primeira e cair na água. A lancha vai lentamente se aproximando do gigante de aço em movimento, atracando, com certa violência, a seu contrabordo. O prático e o marinheiro na proa da lancha seguram-se firmemente no parapeito desta para não serem ejetados pelo impacto. Tudo ocorreu sem maiores sobressaltos, mais uma vez. A lancha emparelhou com o navio e o prático rapidamente saltou para a “escada de quebra-peito”. Esta, então, afasta-se alguns metros, aguardando, para o caso de alguma eventualidade, até que o prático tenha chegado ao convés do navio.
Superado o transbordo da lancha para o navio, resta ao prático escalar o costado de cerca de dez metros de altura, chegando ao convés principal, onde é recebido por um dos oficiais do navio, que tem a função de escoltá-lo até o passadiço, situado oito conveses e mais de cem degraus acima, a mais de quarenta metros da superfície da água. Este percurso ele tem de fazer em passo acelerado, uma vez que o navio já se encontra em águas restritas, adentrando o canal, e o comandante não tem qualquer conhecimento da área, afora as informações fornecidas pela carta náutica, que nem sempre encontram-se atualizadas e corretas em relação à situação do momento.
Bufando como um cavalo de corrida, após este exercício forçado, o prático então adentra ao passadiço, saindo da iluminação do poço das escadarias para um ambiente de escuridão completa, tendo que rapidamente acostumar seus olhos à nova situação. Na escuridão quebrada apenas pelo reflexo das luzes das telas dos radares nas paredes, ele distingue vagamente alguns vultos fantasmagóricos. Um dos vultos se aproxima do prático. Pode-se agora distinguir em seus ombros as platinas com quatro divisas: O comandante do navio, autoridade máxima a bordo. Este cumprimenta o prático, dando-lhe as boas vindas e, após breve troca de informações em relação às condições de manobrabilidade do navio, passa-lhe o comando da navegação, postando-se silencioso ao seu lado, enquanto aquele imediatamente inicia seu trabalho, passando a dar as ordens de leme e máquina necessárias, confirmadas e cumpridas por vozes sem corpo, na escuridão do passadiço. Sente-se neste momento, por parte dos membros da tripulação que se encontram no passadiço, um clima de relaxamento e descontração porque sabem que não precisam mais se preocupar com nada, um expert da região, o prático, está agora no comando! O comandante que, até aquele momento, jamais havia visto aquele prático na sua vida, entrega o seu valioso navio aos cuidados deste, depositando total confiança na sua capacidade profissional.
Todavia, o nosso prático, ainda molhado e enregelado da cabeça aos pés, está agora com o rosto colado no pára-brisa, tentando enxergar através da chuva e da escuridão para se localizar em relação ao canal, que tem largura de apenas cento e cinquenta metros, sem qualquer referência visual, exceto algumas bóias com lampejos luminosos, verdes e vermelhas. Após alguns segundos, percebe que o comandante demorou muito a guinar a boreste, após passar a primeira bóia verde, onde a lancha estivera esperando, e o navio encontra-se em posição desfavorável, à esquerda do canal e aproximando-se deste. Mentalmente, forma-se na cabeça do prático um quadro da situação, que lhe diz que se continuar neste rumo o navio poderá encalhar fora do canal. Sem titubear, imediatamente dá as ordens necessárias para corrigir a rota do navio e possibilitar a passagem do canal da forma correta e segura, evitando o encalhe do navio. Seguem-se novos comandos, levando o navio a realizar um “S” gigante, o que finalmente coloca-o em curso, no eixo do canal, da forma pretendida.
Passado o canal, chegamos ao trecho de navegação dentro da baía Babitonga, já em águas abrigadas, onde praticamente será mantida uma navegação em linha reta até a posição de tomada dos rebocadores. Alguns práticos costumam chamar este trecho de “a hora do cafezinho”, pois é o momento em que podem relaxar um pouco e saborear um café bem quente, além de, nesse em caso em particular, solicitar uma toalha ao comandante para tentar secar-se um pouco, diminuindo o desconforto. Também é a hora da introspecção, quando, no silêncio do passadiço, quebrado apenas pelo monótono pulsar da máquina do navio, ecoando abafado, proveniente das profundezas do gigante, o prático tem oportunidade para refletir sobre a sua profissão, sobre a dimensão de sua responsabilidade, e acima de tudo, sobre o privilégio de poder exercer esta forma de arte, o domínio do homem sobre a máquina, dezenas de milhares de toneladas de aço obedecendo docilmente aos seus comandos.
Aproximadamente na metade do caminho, o prático chama os dois rebocadores que estão atracados no porto, aguardando o sinal para se dirigirem de encontro ao navio. Alertados pelo chamado do prático, os rebocadores ganham vida, a tripulação acionando os seus poderosos motores. As espias de amarração são largadas do cais e estes verdadeiros tratores do mar, anjos da guarda dos navios, e dos práticos, deslizam graciosamente em direção ao navio que se aproxima, deixando um rastro de densa espuma branca em seu caminho. A movimentação dos rebocadores, por sua vez, desperta os amarradores, outro sonolento grupo que aguarda encolhido pelo frio e abrigado da chuva sob uma marquise. São eles os responsáveis por manusear as pesadas espias de amarração dos navios, cabos de material sintético, de espessura semelhante à perna de um homem adulto, com resistência suficiente para manter o navio firmemente atracado ao cais durante as operações de carga e descarga. O encarregado da amarração, rádiotransmissor portátil em punho, chama o prático para confirmar a posição do navio e informa-lo do espaço disponível para a atracação. Para esta noite temos um espaço livre no cais de trezentos e quinze metros, isto é, quarenta metros a mais que o comprimento do nosso navio, uma “atracação na gaveta”, como dizem no jargão portuário, com vinte metros para cada lado. Hmmm……Poderia ser um pouco mais, para tornar a coisa toda menos emocionante! Em todo o caso, o Criador parece disposto a cooperar: a chuva e o vento diminuiram de intensidade, podendo prever-se uma manobra de atracação mais tranquila e agradável.
O prático, então, informa ao comandante que logo chegarão os rebocadores e lhe explica resumidamente a forma como estes serão amarrados ao navio e como será feita a manobra de atracação. Tem início, a partir daí, um balé, perfeitamente sincronizado, executado por gigantes de aço, conduzidos por dezenas de homens, de carne e osso, de diversas nacionalidades, cada um sendo um especialista na sua respectiva função, sob a batuta do prático. A partir do momento em que os rebocadores encontram-se ligados ao navio pelos cabos de reboque, o prático passa, lá do alto, do passadiço do navio, através de seu rádio transmissor portátil, a coordenar todos os movimentos do navio e dos rebocadores, atuando em conjunto para conduzir suavemente aquela massa de enorme inércia ao porto.
Sob a responsabilidade do prático e dependentes de sua aptidão e capacidade profissional estão bens de valores na casa das dezenas de milhões de dólares e também as vidas de todas as pessoas envolvidas, que simplesmente não têm preço. Não existe muita margem para erros, o prático tem que se antecipar ao navio e às condições de manobra, para prever as reações aos seus comandos.
São quase seis horas da manhã. A chuva parou totalmente. Vento calmo. Ordens curtas do prático são passadas pelo rádio, confirmadas e cumpridas imediatamente pelos comandantes dos dois rebocadores. O prático postado ao lado do comandante do navio, do lado de fora do passadiço, dá suas ordens a este, que as repassa sem hesitação aos seus subordinados, cada um atento à sua tarefa, o timoneiro no leme, o primeiro oficial no telégrafo de comando da máquina, o chefe de máquinas, lá no seu mundo particular, nas entranhas do navio, abaixo do nível da superfície do mar, atento para imediatamente atender às ordens, partindo, parando ou alterando a rotação da máquina, os oficiais e marinheiros na proa e na popa, aguardando para passarem as espias de amarração ao cais. Neste, aguardam os amarradores, posicionados junto as cabeços de amarração, prontos para receber as espias. Os estivadores espalham-se nas proximidades, protegendo-se do frio matinal, aguardando impacientes para iniciar a operação de carga e descarga. Os enormes guindastes sobre rodas, para movimentação dos containers, movimentam-se lentamente para suas posições de trabalho tal qual grandes dinossauros despertando de seu sono, esticando seus longos pescoços.
O giro do navio entre as bóias da bacia de evolução, a aproximação e a atracação transcorrem de forma perfeita, sem emoções fortes, como sempre deveria ser. Silencia a máquina do navio, equipamentos eletrônicos no passadiço são desligados, a trepidação normal a bordo cessa. Silêncio completo. Os rebocadores são dispensados, com os agradecimentos sinceros do prático pelo auxílio prestado. O navio firmemente amarrado ao cais. É baixada a escada de portaló. O comandante assina o comprovante de manobra e se despede do prático, demonstrando gratidão pela perfeição da manobra e por seu navio haver, mais uma vez, chegado são e salvo ao porto. Desembarca o prático, fisicamente esgotado, ainda com as roupas molhadas da chuva da madrugada, mas com a agradável sensação de dever cumprido. Ao pé da escada, uma pequena multidão de estivadores, agentes marítimos, autoridades sanitárias e alfandegárias, se aglomera, aguardando apenas o desembarque do prático para subir correndo e iniciar o seu turno de trabalho. O prático passa por eles, cumprimenta os conhecidos e segue adiante. Toca o telefone celular: A estação de praticagem informa que o navio atracado no outro berço já está pronto para a partida, aguardando o prático. Este atravessa o cais, observando que o novo dia já vem despontando sobre os morros, tingindo em tons dourados as águas da baía Babitonga. Ao que tudo indica, o Senhor resolveu recompensar o sacrifício noturno com um belo amanhecer ensolarado. O prático sorrí para si mesmo, desfrutando este breve espetáculo da natureza, lembrando que são momentos como este que tornam gratificante a profissão que abraçou. Sobe lentamente a escada de portaló do navio. A tripulação de prontidão, em seus postos, aguardando. O oficial que recepciona o prático avisa ao comandante, pelo rádio transmissor portátil: “Prático a bordo!”…..Vai começar tudo novamente…..
Muito inspirador! Parabéns ao autor e ao Praticante de Prático que nos brindou com uma boa leitura para nos refazermos de tanta falácia.
Enquanto isso, tem gente que diz ser só uma questão de fazer um "…curso rápido…". Isso é que é ignorância ao pé da letra.
Caro Kelm,
Ninguem como um Prático pode descrever com precisão o que ocorre nas chegadas a "Sao Chico". Sou Comandante e continuo estudando, talvez até para sermos futuros colegas de profissao, enfrentando as noites escuras e geladas da barra.
O CONAPRA tem de fazer alguma coisa, querem acabar com a profissão.
Abraço
MFC concordo plenamente !!! é muito inspirador e até emocionante o texto acima. gostaria de ser um desses homens que tem a responsabilidade e satisfação de exercer uma profissão que contribui, mesmo que quase anonimamente, para garantir uma navegação segura e acima de tudo, proteger a vida das pessoas do mar. que Deus ilumine meus estudos para que possa fazê-lo !!! e Boa Sorte à todos!
Bela narrativa, que retrata fielmente a excelência da praticagem nacional. Parabéns a todos os práticos brasileiros!
Esse texto arrepiou, literalmente!!!! Que Deus proteja todos os Práticos dos perigos e da ignorancia que reina neste país…e que nos ilumine em nossos estudos, para que sejamos dignos de tão brilhante profissão, ao mesmo tempo ciência e arte.
PARABÉNS PELO RELATO FIEL QUE ILUSTRA O EXCELENTE SERVIÇO PRESTADO PELOS PRÁTICOS DESTE PAÍS. LOUVADO SEJA O NOME DO SENHOR QUE GUARDA A VIDA DE CADA UM QUE SE LANÇOU NESTA HONROSA PROFISSÃO.
Não só o texto foi emocionante como também os comentários de pessoas que realmente admiram e pretendem seguir uma carreira que prima pela busca do conhecimento e aperfeiçoamento contínuo, num país onde os cargos mais proeminentes são ocupados por pessoas que se orgulham da ignorância!
Olá, gostaria de saber se mulheres também podem ser tornar praticas?
Desde o processo seletivo de 2006.
Parabéns. Lindo texto.
Felício Deleprani
com relação à enquete (escolhas de ZPs) qual o prejuízo ou vantagem em escolher apenas uma ZP?
Se o candidato tem certeza que não tem a intenção de ir para alguma ZP, ao não selecioná-la, elimina a possibilidade de pegar a vaga de outro que poderia quere-la.